Nem Obama nem Holder conseguem impedir a contínua polarização da América branca e negra
Barack Obama, como se sabe, é o primeiro presidente negro da história
dos Estados Unidos. Ao assumir a Casa Branca em 2009 tratou de indicar Eric H.
Holder, também negro, para ocupar o quarto cargo mais importante da hierarquia
governamental: o de procurador-geral. Holder é o primeiro afrodescendente entre
os 81 que o precederam no cargo. Nos Estados Unidos, o procurador-geral —
também no Brasil — comanda o Ministério da Justiça e atua como advogado-geral
da União.
Mas nem Obama nem Holder conseguem impedir a contínua polarização da
América branca e negra. Excetuando-se a progressiva inserção de profissionais
urbanos negros na malha socioeconômica do país, o restante do mapa racial
americano está deformado.
Um recente levantamento que tomou por base o Censo de 2010 e focou em 20
áreas metropolitanas do país mostrou que a metade das populações negras das
regiões analisadas vive em áreas “sem qualquer presença de brancos”. São
comunidades que vão tocando a vida à margem do noticiário e nas franjas da
sociedade. Até ocorrer algum fato capaz de arrancá-las do anonimato.
Foi o que ocorreu na semana passada com Ferguson, inexpressivo subúrbio
de St. Louis, uma das principais cidades do Meio-Oeste americano. Cravada no
Estado do Missouri, St. Louis é notória por ser uma das cidades mais segregadas
do país. Suas gentes preferem manter distância dos 21 mil moradores de
Ferguson, 22% dos quais vivem abaixo da linha de pobreza — e, além de pobres,
são majoritariamente negros.
Nem sempre foi assim. Até a geração passada a população de Ferguson era
85% branca e 14% negra. Foi a partir de 2010 que o pêndulo se inverteu e hoje é
a comunidade negra ( 69% da população) que sobrevive no desolado subúrbio. Só
que o prefeito e o chefe de polícia local continuam sendo brancos, assim como
cinco dos seis conselheiros municipais. O Conselho de Educação municipal, por
sua vez, é composto por seis brancos e um hispano. E entre os 800 filiados à
principal congregação religiosa local o bloco de fiéis não brancos se resume a
quatro.
Outro dado tóxico da combustão racial que há uma semana consome Ferguson
está na força policial da cidade. São 53 os agentes da lei e ordem que compõem
a corporação, dos quais apenas três são negros. Em compensação, essa mesma
polícia dispõe de blindados retornados do Iraque e Afeganistão, equipamentos
para detectar minas terrestres, silenciadores, fuzis M-16, rifles 5,56 de cano
curto capazes de atingir um alvo a 500 metros. Tudo cedido pelas Forças
Armadas.
A previsível encrenca eclodiu na tarde ensolarada do sábado passado. Ao
caminhar com um amigo por uma rua de Ferguson, em vez de andar pela calçada
como manda a lei, um jovem negro de 18 anos, Michael Brown, foi abordado e
morto a tiros por um policial branco. “Alvejado mais do que algumas vezes”,
admitiu o chefe de polícia, Thomas Jackson.
As versões do ocorrido continuam conflitantes e caberá ao FBI
destrinchar a investigação. Mas sabe-se que o último gesto do adolescente já
baleado na cabeça foi o de levantar os braços e pronunciar suas derradeiras
palavras: “Não atire em mim.”
Foi nas ruas desse subúrbio depauperado de St. Louis que se viu a
primeira demonstração prática do “Programa 1033”, nome dado à distribuição de
equipamento ocioso das Forças Armadas para delegacias de polícia do país. Desde
que os Estados Unidos começaram a enxugar o grosso de sua presença militar no
Iraque e no Afeganistão, o arsenal não utilizado foi sendo paulatinamente
repassado aos departamentos de polícia locais. Vinte e dois estados, por
exemplo, já receberam equipamento para detectar minas terrestres. Trinta e oito
ganharam silenciadores — inclusive Walsh County, na Dakota do Norte, que agora
ostenta 40 exemplares para manter em ordem uma população de 11 mil almas.
Veículos blindados de grande porte, tanques anfíbios, drones , baionetas,
rifles M-16 — o repasse é contínuo. E perigoso.
Em Ferguson, a aparição de policiais usando máscaras, portando uniforme
de combate e circulando em blindados do Exército estarreceu os moradores. O uso
de bombas de gás lacrimogênio, porretes e balas de borracha contra
manifestantes e jornalistas aborreceu Obama. Mas a militarização ostensiva da
polícia já é um fato. Em alguns casos, não fosse pelo emblema da polícia, seria
difícil saber se o sujeito de jaqueta verde e calça de camuflagem que desce de um
blindado cor do deserto pertence às Forças Armadas ou à polícia.
Para se entender a extensão desse processo de militarização recomenda-se
a leitura de “The rise of the warrior Cop” (“A ascensão do policial
guerreiro”), do repórter investigativo Radley Balko. O livro traça a gênese
dessa mudança e alerta para o esgarçar da crucial fronteira que sempre separou
o policial de um soldado americano. O fato de o uso desse armamento e a prática
de táticas paramilitares se voltarem sobretudo contra jovens negros, como
atestam as estatísticas, apenas agrava o quadro. Se foi assim na Guerra contra
as Drogas, desencadeada décadas atrás e conduzida por equipes especializadas da
polícia, não será diferente na atual Guerra contra o Terrorismo.
“Você não conquista a confiança de ninguém se apontar um rifle contra o
peito dele”, garante Balko, baseado na sua larga experiência de Afeganistão.
Em última instância, todo cumprimento da lei depende da confiança da
população nas forças da ordem a seu serviço. Quando o policial começa a ver no
cidadão um inimigo é porque a coisa descarrilhou.
Kara Dasky, coautora de um estudo da American Civil Liberties Union
sobre a militarização da polícia americana, tem uma frase que resume tudo: “Se
você tem um martelo, tudo se parece com um prego. Quando a polícia tem armas de
guerra, a chance de ela usá-las é grande.” Contra quem? Segundo o estudo de
Dasky, 54% das pessoas visadas por essas armas serão negros ou latinos.
Dorrit
Harazim é jornalista
http://oglobo.globo.com/opiniao/o-cidadao-inimigo-13625362
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